Entrevista exclusiva com os talentosos três cineastas de Dia de Preto

Publicada em 30/11/2012 às 00:50

Comente

Conscientes e com os pés firmes no chão, os diretores (roteiristas e produtores também) do filme Dia de Preto, Daniel Mattos, Marcial Renato e Marcos Felipe (na foto acima, da esquerda para a direita), concederam-nos uma entrevista exclusiva e detalhada sobre o filme, cinema, cinema nacional, liberdade e preconceito. Palavras que merecem ser lidas e relidas para entender mais a fundo, especialmente, a realidade dessa arte (o cinema) tão intrincada.

 
1. É sabido que 40% dos filmes nacionais são lançados em, apenas, seis salas de cinema (ou menos) em todo o país. Os títulos brasileiros que chegam à maioria dos cinemas são produções, em sua maioria, sem identidade e alavancadas por interesse de certa emissora de televisão. Dia de Preto conseguiu escapar dos 40% dito, mas, ainda assim, estreou em sete salas somente, sendo quatro delas no Rio de Janeiro. Como vocês veem essa dificuldade de abertura para os filmes nacionais de orçamento difícil? Existe o clichê da luz no fim do túnel?
 
Marcos Felipe: Não há luz no fim do túnel por um motivo muito simples: enquanto perdurar o atual modelo de fomento à produção brasileira (com recursos públicos a fundo perdido), não haverá qualquer espaço para a produção independente de recursos públicos. O produtor brasileiro, que se acostumou a ser remunerado na produção, não se importa muito com os constantes fracassos de bilheteria, desde que continue frequentando as sessões de gala de festivais mundo a fora e remobiliando bienalmente seu apartamento no Leblon. Não podemos, contudo, imaginar que o produtor é o único elo que não raciocina dentro de uma lógica empresarial. Para o lançamento de DIA DE PRETO, procuramos várias distribuidoras nacionais. Nenhuma delas se deu ao trabalho de avaliar o filme que tínhamos nas mãos. Ou, se avaliaram, jamais nos comunicaram. Algumas nem sequer responderam nossos telefonemas ou e-mails. Este é o grau de profissionalismo que temos nos players de nosso mercado. Estão todos, sem exceção, viciados no lucro fácil que a distribuição incentivada com recursos públicos representa. Distribuir um filme sem recursos públicos implica em duas coisas que eles não querem: risco e trabalho.
 
Daniel Mattos: O mercado audiovisual brasileiro é um dos mais distorcidos do mundo. E essa distorção foi produzida pelo próprio Estado através de uma política de fomento clientelista que sustenta um pequeno grupo de produtores, incapazes de fazer um produto sustentável ou competitivo.  Não é diferente de tudo mais que os governos fazem. É uma relação promíscua entre público e privado, baseada no privilégio, nunca no mérito, e que vem desde a Colônia. As políticas que temos foram feitas para possibilitar que aspirantes a cineasta, oriundos das elites (econômica, cultural e política) pudessem praticar qualquer cinema sem nenhum risco. É o Estado "paitrocinador", que distribui a bolsa-cineasta àqueles que têm acesso aos traficantes de influência no Estado. Essa playboyzada gasta cada vez mais milhões de reais para fazer filmes irrelevantes, tanto do ponto de vista comercial quanto do ponto de vista artístico, e assinam contratos alienando todo o retorno financeiro das obras para os verdadeiros beneficiários do sistema, que são os grandes distribuidores e programadores de conteúdo. É simplesmente impossível concorrer num mercado tão distorcido. E quanto mais dinheiro o Estado coloca no setor, pior fica. Digo isso de cadeira, porque trabalho dentro da ANCINE. Enquanto houver esse tipo de fomento, não haverá dignidade no audiovisual brasileiro.
 
Marcial Renato: Não tenho uma opinião tão pessimista quanto meus parceiros, embora compartilhe com eles o diagnóstico. Nossa política pública para o audiovisual apresenta uma contradição fulgurante: na teoria, aposta tudo no fortalecimento do produtor independente; na prática, sustenta uma estrutura que estimula esse mesmo produtor a abrir as pernas para os demais agentes do mercado. Assim, são beneficiados aqueles que não têm interesse na independência e nem precisam lutar por resultados, uma vez que o Estado financia as produções, a fundo perdido. Por seleção adversa e outros fatores atávicos da sociedade brasileira, esses produtores têm acesso privilegiado às fontes de recursos públicos (programadores, distribuidores e grandes empresas). Se há alguma luz no fim do túnel, penso que está na entropia inerente a um mercado em transformação: tubarões de outros mares (empresas de Internet e telecomunicação), com poder de fogo para interferir no modelo de negócio, se preparam para dividir essas receitas. Pode ser uma oportunidade para produtores, especialmente na modalidade de conteúdo por demanda.
 
2. Por falar em baixo orçamento, uma curiosidade: Qual foi a verba total para a produção de Dia de Preto? Vocês utilizaram alguma ferramenta técnica para maquilar a falta de verba... como a fotografia? Se sim, foram muito cuidadosos. Porque, além de disfarçar o baixo custo, tudo parece se encaixar muito bem.
 
Marcos Felipe: O filme foi produzido com cerca de R$ 120 mil, excluindo-se gastos de divulgação e comercialização. É claro que este valor representa apenas o que foi efetivamente pago em dinheiro, mas os gastos do filme somam muito mais que isso. Por exemplo, quase toda a alimentação da equipe foi viabilizada em uma triangulação entre a empresa RICA, nossa produtora e um restaurante do RioShopping: A Rica doava para a Produtora alguns vários quilos de alimento por dia de filmagem, que eram repassados ao restaurante que preparava as refeições da equipe. Grande parte do equipamento também foi conseguida por meio de apoio de empresas parceiras. A excelência técnica atingida foi resultado de intensivos testes de possibilidades com o equipamento disponível, incluindo hardware e software.
 
Daniel Mattos: Dia de Preto custou menos de 150 mil reais em custos diretos. Claro que isso só foi possível graças à participação graciosa da maior parte da equipe e elenco e do apoio de parceiros com equipamento. Mas ainda que tudo seja monetizado, a produção teria custado pouco menos de 1 milhão. Cinema, mesmo industrial, é artesanato. Cada cena, cada plano pede uma solução criativa. Cada detalhe de Dia de Preto foi estudado para que chegássemos à solução que imprimisse o maior valor de produção possível pelo menor custo. A maioria das produções não faz isso. É a herança maldita do Cinema Novo, uma espécie de elogio da incompetência que criou a ideia falsa de que cinema independente e contestador tem que ser pobre, tosco e mal executado. Daí temos o cenário de hoje, em que filme de baixo orçamento é feito com câmera na mão, num único cenário sem nenhum recurso audiovisual digno do nome. No outro oposto temos blockbusters hiper-produzidos à custa de orçamentos tão grandes que chegam a ser ofensivos à consciência social de qualquer cidadão. No Brasil, graças ao dinheiro público, conseguimos reunir o pior dos dois mundos. Temos filmes toscos, pobres e caríssimos. Vemos filmes com orçamentos de quatro, cinco, seis milhões que simplesmente não se justificam na tela. Não precisa ser assim. E DIa de Preto é a prova disso. Talvez essa seja uma das razões pelas quais o filme incomoda tanto o Status Quo. Como não nos dobramos às regras de rebaixamento da inteligência humana do cinema comercial e nem às regras de mistificação, charlatanismo e bajulação do dito "cinema de arte", o resultado é esperado: nenhuma distribuidora sequer sentou conosco pra conversar, nenhum grupo exibidor de médio pra maior tampouco e o "bonequinho" do Globo (símbolo perfeito do estamento e do classismo) só poderia cair no seu sono moral de sempre.
 
3 – Além das claras influências (ou referências) de Aristóteles, Marx, Nietzsche e Jung, como e de onde surgiram as ideias para escrever a trama? E o humor utilizado tem algum caráter pessoal?
 
Daniel Mattos: Tudo é pessoal e ao mesmo tempo universal. Estamos tratando aqui de questões que dizem respeito a todo ser humano. Falamos de preconceitos e de estereótipos que influenciam a todos nós. Misturamos de forma deliberada referências da cultura mais popular e comercial com recursos e fontes eruditas, alegorias, nonsense, etc. O filme é, em todos os sentidos, uma provocação a essa dicotomia entre cinema comercial e cinema de arte. Dicotomia que alimenta o autoritarismo e a má-fé de ambos os lados. Nós representamos o extremo centro. Rejeitamos os dois lados e somos rejeitados por eles. E não estamos sozinhos. Hoje há milhares de cineastas usando as novas tecnologias pra fazer exatamente isso que nós fizemos. Se existe a tal "luz no fim do túnel" ela está aí. Não está no Oscar, e muito menos em Cannes.
 
Marcial Renato: Dia de Preto é o resultado final do projeto original de se produzir um filme de longa-metragem com qualidade técnica sensível e independência artística absoluta, por um custo possível e razoável. Trata-se de um filme encomendado por nós a nós mesmos, muito mais do que um projeto de veleidades autorais individuais. Essa decisão nos proporcionou a liberdade de usar as referências e estilo de humor que gostamos, sem o pagamento de qualquer pedágio cultural ou a adesão a fórmulas mercadológicas de ocasião.
 
4. Os personagens do filme funcionam como sínteses de estereótipos comuns. Esse é o motivo que levou vocês a não batizar com um nome próprio qualquer um deles? Essa concentração de caricaturas (no caso, excelentes caricaturas) não corria o risco de deixar o próprio filme caricato e sem um valor real?
 
Marcos Felipe: Os personagens com os quais o nosso personagem principal encontra foram criados para serem reconhecidos como estereótipos e este foi o motivo de termos decidido por não possuírem nomes próprios. Na versão do filme que circulou nos festivais de cinema, na primeira aparição de cada um desses personagens, nós colocamos uma cartela indicando o estereótipo: Vilão, Patrão, Chefe, Vaca (uma brincadeira com o estereótipo da “femme fatale” e a trama do filme) e, por último, utilizamos o sinal de interrogação "?" para um personagem que, ao contrário dos outros, parecia querer fugir dos estereótipos facilmente reconhecidos, quando, na verdade, ele representava o estereótipo mais comum, onde se encontra 99% da população, que é o cara que está apenas vivendo a vida ou vendo a vida passar. Contudo decidimos abrir mão destas cartelas e substituí-las por ditados populares que simbolizam as cinco verdades sobre a liberdade que o personagem principal aprende a partir do encontro com cada um daqueles personagens estereotipados.
Sobre o risco de deixar o filme caricato, tínhamos consciência dele, mas entendemos que o estereótipo e o clichê surgem a partir do reconhecimento generalizado daquela situação como verdadeira. Em outras palavras, um estereótipo só se torna um estereótipo porque funciona realizando uma determinada função pela qual é reconhecido. O mesmo acontece com o clichê. O problema não está na sua utilização, mas na forma como é utilizado. E, claro, como por mais que tentamos racionalizar nossa impressão sobre uma obra, no fim das contas, o que conta mesmo é a impressão inicial de termos ou não gostado dela. Assim, há que considere o filme caricato e sem um valor real...
 
Marcial Renato: Como disse o Marcos, os personagens do filme foram concebidos para serem reconhecidos como estereótipos, tipos sem nome, sínteses e remixes de outros personagens clássicos do cinema e da literatura. A proposta do filme foi revitalizar esses estereótipos, ou subvertê-los, de forma que pudessem resgatar a força dos arquétipos originais que os personagens representam: o herói, o vilão, a mulher, o patriarca etc. Essa elaboração intelectual, no entanto, é secundária. Não é preciso entender a proposta para compreender os personagens. Uma parte do público, numa leitura superficial, pode enxergar apenas a caricatura. Assumimos esse risco.
 
5. Vocês têm uma grande influência do cinema de Hollywood, correto? Em uma crítica minha, cheguei a comentar que Marcelo Batista (o protagonista) me fez lembrar Jim Caviezel, em suas expressões, no filme Além da Linha Vermelha, do Malick. Como essa influência foi trabalhada antes e durante as filmagens? É um desejo de vocês, seguir, no futuro, em uma carreira no cinemão americano?
 
Daniel Mattos: O cinema pra mim não é uma carreira. É um karma.  Não sei nada sobre a dinâmica do mercado americano e que chances reais alguém como nós teria naquele mercado. Sei que o filme foi bem recebido lá. Bem melhor que no Brasil, onde a patrulha ideológica só se permite a imitação do cinema europeu (mas gostam de falar de colonização cultural). Ainda não fizemos negócios nos EUA, embora tenhamos conversas que ocorreram e outras em andamento. Gosto muito do cinema americano. É o melhor cinema feito no mundo, sem dúvida alguma. Para além da dicotomia entre um cinema comercial que toma o espectador por idiota e um cinema de arte que faz exatamente a mesma coisa, só que da forma oposta, observo dois movimentos. Primeiro, há uma cinematografia nascida no cinema de arte buscando se movimentar na direção do público, saindo do autismo e do umbiguismo que dominam a Europa. Segundo, há um cinema comercial que busca sair do óbvio, da fórmula imbecil e da previsibilidade para revitalizar os clichês. As duas iniciativas são positivas, mas não há dúvida de que os melhores produtos vêm do segundo grupo. E o lugar em que isso está sendo feito é no cinema independente americano, e não no cinema estatal europeu ou brasileiro. Desses últimos só vêm autoritarismo intelectual, charlatanismo artístico, fraude contábil e corrupção política.  
Marcial Renato: A influência é inegável, tanto na atenção aos aspectos técnicos quanto na proposta artística. Antes de começarmos as filmagens, fizemos um trabalho de preparação com o elenco e a equipe do filme, quando apresentamos nossas referências e a concepção da obra. Para nós, era muito importante que o resultado final fosse compatível com essa proposta, o que pudemos confirmar com a boa acolhida do filme nos EUA, onde recebemos prêmios de trilha musical e efeitos especiais. Quando Dia de Preto foi exibido no Chicago Latino Film Festival, um dos críticos que avaliou positivamente o filme fez questão de ressaltar a qualidade de som e imagem na pós-produção, considerada “world-class”. São retornos importantes e muito satisfatórios.
 
6. Como  vocês veem a liberdade (em seus diversos contextos) e o preconceito racial em nosso país? E qual é a repercussão esperada, nesse âmbito, para Dia de Preto? 
 
Daniel Mattos: Repercussão não é algo que se possa esperar. Ela é um produto político das relações promíscuas entre o poder da mídia e aqueles artistas que se arvoram porta-vozes do status quo. Diga-se de passagem são exatamente aqueles que 30 anos atrás se arvoravam porta-vozes da contracultura. Hoje eles são a voz do classismo e a contracultura somos nós, essa multidão de realizadores culturais fazendo as coisas por seus próprios meios, sem contar com o favorecimento dos poderosos. A sociedade brasileira é racista e, mais ainda, classista. Existem duas características que identificam o racismo brasileiro. Primeiro, é um racismo hipócrita, que é praticado a toda hora mas nunca é assumido. E segundo, ele está a serviço do classismo. O racismo brasileiro é uma forma de identificar o pobre, o sem poder, o sem voz e, portanto, aquele que pela vontade de nossas elites deve permanecer assim: preto, pobre, mudo e incapaz. Nossa relação no Brasil com a questão racial passa por reforçar esses estigmas, mesmo quando a intenção parece ser outra, como é o caso das cotas. Os brancos ricos fazem questão de estabelecer uma relação paternalista com os pretos e pobres. Uma relação de eterna dependência. Isso marca nosso cinema, que sempre foi escravo da "temática social". O cinema novo nada mais era que um cinema de brancos ricos, olhando de cima pra baixo para os pretos pobres com uma condescendência que nunca me enganou. E isso está presente e se desdobrando em aberrações como esse 5x Pacificação, que é uma campanha política deslavada, bancada com grana do governo estadual, disfarçada de documentário social. Esse tipo de coisa perpetua o atraso.
 
Marcial Renato: Como o personagem principal postula no final do filme, “liberdade é saber a verdade, mesmo quando a verdade é uma farsa”. Penso que o ensinamento cristão, ressalvado pela máxima niilista, sintetiza bem as contradições da liberdade em nosso tempo. A mesma liberdade que garantiu a independência do filme limita sensivelmente as possibilidades de repercussão do mesmo. Esse é o nosso mercado. Ou nossa farsa.
 
Saiba mais sobre Dia de Preto.
 
por Sihan Felix - @sihanfelix

Mais matérias...

Comentários (0)





Nenhum comentário, ainda. Seja o primeiro a comentar!