Nosso Lar

Publicada em 20/09/2010 às 00:00

Comente



Obs: Não recomendo a leitura à quem ainda não teve a oportunidade de assistir. Contém spoilers.

Creio que seja válido, no caso deste filme, situar, de forma rápida, algumas considerações pessoais. Farei isto com o frágil intuito de não ser julgado quanto à minha crença (?) e a improvável influência dela sobre a crítica, visto que o meu dever é escrever sobre o filme em si, independente de quais valores estão nele agregados. Então...

Cresci em meio a uma família religiosa. Minha mãe é católica, o que me levou à, além de ser batizado, fazer a eucaristia. Apesar do seu catolicismo, ela sempre mostrou um certo interesse pelo espiritismo. Meu pai, por sua vez, sempre foi leitor da doutrina de Allan Kardec, o que me levou a ler muitos livros espíritas... e gostar de alguns. Além de, claro, conhecer essa crença. Inclusive, se vem ao caso, o primeiro presente que ofereci à minha mulher foi o romance espírita O Afinador de Violinos, de Wilson Granella.

Quanto ao que creio hoje, acredito que um trecho do prefácio do meu livro A Face da Ira - e o deus fecundado seja o suficiente para elucidar esta questão: ... Porém, meu caro ou minha cara, não me julgue um ateu. O meu deus não nos cunhou como seu semelhante e muito menos é membro dizimista de religiões. É ele uma fé introvertida: vegetativo, disposto à eutanásia, e eu, como seu responsável e um exemplo da nossa hipocrisia, o privo dessa felicidade.

Rumando ao mundo cinematográfico, tenho grande admiração por algumas obras essencialmente baseadas no espiritimo. Não falo de obras de terror, onde fantasmas vêm assombrar os vivos e monstros surgem das trevas. Apesar de existirem algumas obras desse gênero que são interessantes, nenhuma encontra alicerces firmes no espiritismo. Falo de produções que investem no tema de forma direta e sem qualquer máscara, assim como Nosso Lar. Dentre estas, posso citar o ingênuo, mas muito sensível, Ghost - Do Outro Lado da Vida, e o excepcional Amor Além da Vida.

Certamente, mesmo não se tratando de uma história além mundo, os nacionais Bezerra de Menezes: O Diário de um Espírito, e o recente Chico Xavier: O Filme podem ser mencionados nesta lista. Este último, em especial, por se tratar do médium que, indiretamente, deu origem ao trabalho que entrará em questão no parágrafo seguinte.

Pois bem... Nosso Lar é de uma prepotência catastrófica. Wagner de Assis exala todo o seu amadorismo. Sua direção é pífia e incomoda desde os primeiros minutos. Não mostra firmeza para guiar os atores, não mostra qualidade nos ângulos escolhidos... E, quando deveria se utilizar de toda grandeza para a qual se propôs, não o faz. Um exemplo disto é claramente observado na cena em que André Luiz (Renato Prieto) se encontra, de pé e de costas, observando o lugar que fora parar após sua morte terrena. Esta cena, por si só, seria magnífica se não fosse a novelesca filmagem guiada por um diretor que segue perdido durante os cento e dois minutos de projeção.

Ainda sobre este primeiro lugar para onde o espírito do médico André Luiz precisou passar, o livro por ele escrito através do médium Chico Xaver – Sim... eu li antes de assistir. E não... isto não tem qualquer influência que não seja para contestar a qualidade do filme em si. – afirma: "... A paisagem, quando não totalmente escura, parecia banhada de luz alvacenta, como que amortalhada em neblina espessa, que os raios de sol aquecessem de muito longe. ..." Ora, a direção de arte merece algum mérito, então? Certamente. Os méritos são visíveis... mas, e lá vamos nós novamente, esbarra em uma prepotência absurda. Em nenhuma linha do livro são citados seres alados no céu escuro e anuviado que voam em círculos e são o misto das silhuetas de um morcego e de uma ave de rapina. Muito menos que estes seres não tem qualquer dimensão ou profundidade, obtendo, também, a aparência de recortes em folha A4 pendurados por linhas e guiados pelo vento. Alguns, inclusive, demonstram a surpreendente habilidade de voarem lentamente de lado. Por que foram inseridos? Para quê? A fotografia já era satisfatoriamente sinistra. A tensão já existia. Aquelas coisas voadoras apenas roubam a atenção do espectador do que realmente importa, deixam a cena feia e depois não mais aparecem, provando serem desnecessárias.

Já com a barba bem crescida e muito magro, André Luiz, após profunda súplica, é resgatado por Clarêncio (Clemente Viscaíno) e levado à colônia Nosso Lar. Durante a recuperação do ex-médico, conhecemos um pensamento curioso e interessante: "A água é a chave da paciência.", e somos apresentados à pequena personagem de Aramis Trindade, que se mostra caricato e dispensável à narrativa.

Recuperado, André Luiz é levado por Lísias (Fernando Alves Pinto) para um tour pela cidade. No caminho, ele reecontra uma antiga paciente (Aracy Cardoso)... Esta, sim, mostra-se uma personagem fundamental ao enredo, apesar de tão caricata quando Aramis Trindade. Neste momento, somos guiados, junto a eles, à apresentação dos ministérios espirituais, no que é uma sequência tão rasa e fria que pode ser julgada como tendo o único intuito de enaltecer os fascinantes (?) efeitos especiais.

Eu disse fascinantes? Pois assim como o são ao primeiro olhar (acreditar que Niemeyer passou por ali pode ocorrer), numa segunda vista tudo aquilo começa a parecer artificial (high-tech), por fim, torna-se cenário de um bom game (sci-fi glitter). É interessante observar os figurantes quando estes estão ao segundo e terceiro planos e ao fundo existe alguma das modernas construções... Caminhar em slow motion é algo curioso de se ver enquanto ao primeiro plano tudo ocorre normalmente. Se eu não conhecesse os cinco trabalhos anteriores de Wagner de Assis, eu diria que ali fora inserido um conceito de tempo bastante peculiar... onde as dimensões se entrelaçam e... fim da divagação.

O roteiro (apenas baseado no livro homônimo e também, vagamente, no seguinte da série André Luiz: Os Mensageiros), escrito pelo próprio diretor, é tão superficial e forçado que pode ofender, até mesmo, a alguns espíritas. Os diálogos são bobos e sem a profundidade tão merecida. A cena que poderia ser das mais interessantes, mostra-se exclusiva... Por que os espíritos que surgem da segunda guerra mundial são todos judeus? Rabinos e afins caminhando com a estrela áurea de Davi... Será que ninguém de outro povo teve a alma pura o suficiente para ir à colônia sem escalas? Mas esperar que o roteirista que co-escreveu Xuxa Requebra e, com A Cartomante, destruiu o conto de Machado de Assis, faça algo aproveitável é como aguardar que o Cristo Redentor se ajoelhe para orar. 

A fotografia, que consegue dar um ar sombrio às primeiras cenas, é eficaz ao contrastar, em absoluto, com a pureza e limpeza das cenas vistas na colônia, mas peca bizarramente no enquadramento. Por que enquadrar todo o ambiente, enquadrar as personagens, e, sem pudor, corta-lhes os pés? Estariam de havaianas (merchandising sem bônus) amarelas? Como isto incomoda! E mostra desprezo ao convincente figurino de Luciana Buarque.

É necessário ressaltar, igualmente, o desrespeito que o filme demonstra com os espectadores músicos, ao mostrar, em uma sequência musical ridícula, um quarteto de cordas dublando (algo que sou terrivelmente contra e já comentei na crítica do filme O Solista) bizonhamente. Por que não usar músicos de verdade quando não são atores que precisam dublar? Ainda mais desrespeitoso é isto em relação àqueles espectadores que não percebem e são induzidos a acreditar que a música está saindo daqueles instrumentos. Lastimável! Péssima é, ainda, a escolha de apresentar todo o primeiro movimento da décima quarta sonata para piano de Beethoven, exceto os três últimos acordes. Por que cortar o final se já chegara tão bem ali?

Das atuações, salva-se, somente, Paulo Goulart, que vive o Ministro Genésio, em uma curtíssima cena, o sempre eficiente Werner Schünemann, como Emmanuel, e a sensacional Chica Xavier, que fala apenas uma frase durante todo o longa. É incrível como um texto demente pode fazer até atores excepcionais, como Othon Bastos, atuarem sem qualquer espírito (olha só!). Renato Prieto parece que esqueceu de descer dos palcos de algum curso clandestino de teatro, e os outros, costumeiramente bons intérpretes (mas não desta vez), poderiam me fazer acreditar que eu estava assistindo um filme futurista, onde, na verdade, todos são robôs fantasiados de humanos.

É claro que, ao final, o filme consegue transmitir algumas mensagens... mas estas são tão pouco aprofundadas que, certamente, podem ser muito melhor explicitadas em uma conversa corriqueira com um(a) grande amigo(a), ou em um ensinamento paterno/materno de anos atrás.


Bons e ruins filmes para nós!

Saiba mais sobre o filme Nosso Lar.


Por Sihan Felix

Comentários (0)





Nenhum comentário, ainda. Seja o primeiro a comentar!